terça-feira, 31 de março de 2020

Por trilhos de Campo Grande à Central.

    A seguir, uma crônica de minha autoria presente no livro que publiquei, "Contos e crônicas ", da editora Palavra é arte, intitulado " Carlos Eduardo de Souza e outros autores", no qual divido meus textos com de outros autores, do Brasil e do mundo, e que ainda tenho alguns exemplares à venda.
Ilustração de Elder Sodré.

Crônica de uma viagem de trem

    Num certo dia, embarquei em uma viagem muito comum para boa parte dos cariocas, mas não muito para mim. Trata-se de uma migração pendular, aquela do dia a dia de milhões de trabalhadores, estudantes e afins, de ida e volta pelo mesmo trajeto pela malha ferroviária.
    As viagens de trem possuem suas peculiaridades, como os divertidos vendedores, dos mais variados e imagináveis produtos, com seus bordões, clichês, num vai e vem incessante dentro de vagões lotados, com pessoas das mais variadas características, objetivos, destinos e, inclusive, até classes sociais.
    Neste dia fui rumo ao centro da cidade, viajando neste cenário "mágico". Eis que surgiu uma figura que, a princípio, imaginei ser mais um dos muitos ambulantes frenéticos, que caracterizam as viagens ferroviárias, o nosso "Expresso do Oriente". No início do discurso do fulano, não prestei muito atenção, pois achei que era mais uma tentativa de venda. De repente, uma fala do cara me chamou a atenção. Ele disse:
    - As mulheres têm que ser valorizadas. Elas têm que dar conta do marido, dos filhos, da casa, trabalham fora...e o homem não dá a mínima pra isso!
     Confesso que a partir daí comecei-me dar atenção ao falante. Achei sua fala interessante. E o homem continuou:
    - Os homens têm que levar flores para suas esposas...(Naquele momento lembrei-me da música da Ana Carolina que diz "...toda mulher gosta de rosas...").
    Até aí estava tudo dentro dos "trilhos", quando o rapaz começa a ficar polêmico e diz: - É por isso que hoje as mulheres estão ficando com mulheres, pois uma entende melhor a outra, já que os homens não as valorizam. Pensam que todos os homens são ogros! Mulheres, nem todos os homens são ogros, não!
    Aí pensei: - Agora ele conseguiu chamar a atenção de quase todo o vagão.
    E ele continuou:
    - Vocês, pais, têm que orientar direito seus filhos. Mostrar a realidade financeira pra eles, levá-los a lugares onde vivem pessoas carentes, darem enxadas nas mãos deles e dizer que se eles não estudarem, vão ter que usar a força bruta.
    Gostei dessa última fala. Para mim, houve uma certa relevância. Mas o camarada resolveu voltar à polêmica e disparou:
    - Vocês, pais, têm que perceber se seus filhos estão ficando afeminados. Isso é coisa do diabo. Isso não existe! Homem é homem e mulher é mulher!
    Naquele momento lembrei-me de outra música, a do Falcão, que cita "...homem é homem, menino é menino, macaco é macaco, e v..."
    "Pronto, agora esse cara vai ser linchado nesse vagão lotado. Vai acontecer uma tragédia", pensei.
    Mas o homem não se intimidava e continuava a comentar sobre aqueles assuntos. Achei aquele ser de uma coragem tamanha, vide o mundo em que vivemos atualmente, no qual esses assuntos são superdelicados e passivos de punições.
    Depois de soltar outras frases, digamos, no mínimo machistas e/ou homofóbicas, o homem soltou:
    - Bom, pessoal, se me permitem, agora vou trabalhar. Fiquem com Deus e tenham uma boa viagem.
    As pessoas ficaram se entreolhando. O homem desceu na estação seguinte (ileso) e seguiu seu destino (assim eu acho).
   E assim a vida de cada um seguiu também. O homem deu seu recado e aparentemente nada mudou.  Mas tivemos uma exposição de democracia naquele vagão de trem. Coisas daquela natureza, a diversidade, é o que mais caracteriza as viagens de trem. Diversidade até de opiniões.
    Fim da linha.




4 comentários:

  1. Realmente os trens da Supervia são os espaços mais democráticos que existem. Tem de tudo um pouco e até o inusitado.
    Um grande abraço virtual, meu amigo!

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    1. Com certeza os trens são palco da democracia em todas suas faces. Um grande abraço.

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  2. Armando Lopes
    De fato a crônica nos permite ver outros palcos que não sejam formais, como a sociedade conhece, e nos faz observar com outros olhos, a realidade cotidiana e real.
    Parabéns!

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